O direito à educação para todos – que depois será transformado em uma obrigação – mudou a natureza do sistema escolar e ampliou as possibilidades individuais. Mas o fortalecimento do conhecimento como direito tem um percurso longo e cheio de obstáculos. Até os anos 1940 o fracasso escolar era atribuído a variáveis biológicas, até mesmo com conotações racistas. Nos anos 1960 é o momento em que é examinado o contexto familiar e a classe social da família. Foram realizadas pesquisas demográficas e estatísticas para revelar os desequilíbrios do sistema educativo. Era usada a posição da família dentro do sistema de estratificação social para explicar o sucesso ou o fracasso de uma criança na escola.
Vários modelos de avaliação dos processos educativos foram desenvolvidos por Bourdieu, Bernstein e Labov. E a linguagem era sempre o ponto de referência. Na falta de homogeneidade da transferências das habilidades linguísticas, na própria composição das nações ou culturas, a diferença no aprendizado da linguagem se instaura e delimita a participação social.
A nova desigualdade é a preparação para o mercado de trabalho. De acordo com Durkheim, as características pessoais são elementos decisivos nas possibilidades de escolhas profissionais. Pobreza, baixa autoestima, ausência de uma formação cultural são elementos que bloqueiam o desenvolvimento profissional. A escola deveria ser um lugar de desbloqueio do aparelho de reprodução das desigualdades na medida em que ela pode apresentar um coeficiente multiplicador das desigualdades, como separar os alunos por competências ao longo da vida escolar ou avaliar sem considerar as diferenças individuais.
O princípio é a formação de um sistema escolar baseado na meritocracia, onde os mecanismos de seleção e percepção se confrontam com a qualidade dos conhecimentos. Nesse processo se esconde a crueldade do sistema porque essa qualidade depende não somente da família e da comunidade onde o indivíduo cresceu. A escola se torna um sistema de seleção por resultados, o que aumenta ainda mais a desigualdade entre os indivíduos. A diferença entre as famílias é um fator de desigualdade na escola, influencia na aquisição da linguagem, é essencial para a aquisição da escrita. Nas famílias em que hábitos como ler, escrever e dialogar são valorizados, as chances de um melhor desenvolvimento escolar são maiores.
Uma das maiores crueldades do sistema escolar é o analfabetismo funcional, fenômeno em que o indivíduo aprender a ler e a escrever, mas não consegue se exprimir como desejaria. Ler e escrever não é um ato espontâneo nesses casos. Essa limitação é um risco de fragilidade no ambiente de trabalho, mas também na vida social e cultural, levando a uma progressiva situação de marginalidade.
A luta contra o analfabetismo funcional é um elemento essencial na discussão sobre a igualdade de oportunidades. A exclusão se apoia no desenvolvimento intelectual bloqueado, diminui o potencial de consciência das relações de força, de dominação e de legitimação na sociedade. Aprender a se expressar é um dos fatores essenciais na superação da pobreza e seus efeitos negativos. E a família é o ambiente principal de desenvolvimento do indivíduo não somente do ponto de vista afetivo, mas também intelectual.
A ausência de apoio intelectual em casa ou o estímulo do pai ou da mãe são determinantes no desenvolvimento das pessoas. Não é o caso de dizer que esses indivíduos não serão capazes de se desenvolver da mesma forma que os outros, apenas que terão mais dificuldades. Não quer dizer nem mesmo que a ascenção social será bloqueada, apenas encontrarão mais obstáculos. As crianças e adolescentes dos países em desenvolvimento, por exemplo, têm mais dificuldade em superar a pobreza quando não encontram na família e, em seguida, na escola, o apoio necessário para se exprimir.
O analfabetismo funcional é inicialmente um problema de linguagem que se revela, portanto, também um problema social. A sensibilização ao problema é o reconhecimento oficial da existência da dificuldade na relação entre pobreza e exclusão social. Isso faz com que a linguagem tenha um lugar determinante nessa situação. O analfabetismo funcional é um elemento da pobreza e pode se transformar também em fator de exclusão social.
Uma pesquisa sobre a história da alfabetização realizada por Jack Goody e Ian Watt mostra que as transformações sociais e culturais na introdução da escritura nos grupos humanos, a partir dos clássicos gregos, revela que os meios de comunicação condicionam e alteram a percepção e a cognição humana, uma espécie de tecnologia do intelecto.
É na transmissão do patrimônio cultural de geração em geração que a sociedade mantém formas de ação standard que são comunicadas somente parcialmente com meios verbais, como o modo de cozinhar a comida, cultivar a terra, tratar as crianças. Mas muitos elementos significativos de cada cultura humana são transmitidos através da palavra e consistem no especial conjunto de significados e comportamentos que os membros de cada sociedade relacionam aos símbolos verbais.
Entre os alfabetizados, a escritura oferece uma alternativa para a transmissão das orientações culturais e favorece a consciência de incoerências, oferecendo um sentido mais agudo de percepções das transformações. Democracia e alfabetização caminham juntas. Uma democracia educada é um sonho cultivado teoricamente no intuito de desenvolver um sociedade mais igualitária. Nietzche descrevia a modernidade como “enciclopédias ambulantes”, incapazes de viver e agir no presente e com obsessão por um “sentido histórico” que fere e depois destrói as entidades viventes, seja um homem, um povo ou um sistema cultural.
Mas entre as consequências da cultura de alfabetização é óbvio que a competência ao se servir da leitura e da escritura é um dos principais elementos de diferenciação social nas sociedades modernas. O alfabeto, a imprensa e a educação abriram a todos a cultura letrada em uma escala precedentemente desconhecida, a força da comunicação alfabeta se impõe com mais força e uniformidade que a transmissão oral da tradição cultural. Platão sugere que os efeitos da leitura são menos profundos que os da conversa. A abstração do silogismo descuida da experiência social e do imediato contexto pessoal do indivíduo. A divisão do saber em compartimentos restringe os tipos de conexões que uma pessoa pode instaurar e ratificar com o mundo natural e social. As sociedades letradas, no entanto, não podem descartar, absorver ou transformar o passado da mesma forma. Os seus membros devem fazer as contas com documentações permanentes do passado e das suas ideologias.
A influência da pobreza na educação demonstra como o processo de socialização se articula entre linguagem e estrutura social. Existem mecanismos de reprodução, manutenção ou transformação da ordem social a partir da linguagem e dos sistemas simbólicos usados na família e na escola, enquanto as classes mais ricas se utilizam de códigos sociolinguísticos restritivos e elaborados, os mais pobres muitas vezes têm acesso somente ao código restritivo. O código elaborado é uma gramática elaborada e complexa, com uso de preposições, pronomes impessoais, verbos passivos, uso de adjetivos e advérbios insólitos; o código restrito representa uma gramática simples e breve, frases quebradas ou interrompidas, uso frequente de comandos breves, de afirmações categóricas (não hipotéticas), uso simples e repetitivo de conjunções, uso limitado e rígido de adjetivos e advérbios. A desvantagem linguística determina um percurso social.
De acordo com Bernstein, existem mecanismos de reprodução, manutenção ou transformação da ordem social a partir da linguagem e dos sistemas simbólicos usados na família e na escola. Existe um papel fundamental da posição de classe para explicar as desigualdades, a relação estreita entre as categorias fundamentais do pensamento e a organização da vida social. A relação entre o sistema de regras linguísticas de um lado e o sistema sociocultural de outro lado, na convicção de que a forma das relações sociais estabeleça quais significados devem ser realizados verbalmente, e de um ponto de vista de produção linguística como escolhas sintáticas e lexicais podem ser feitas. As diferenças na linguagem remetem a códigos sociolinguísticos diversos, e a um sistema de estratificação social determinado. Mas a sua posição não é determinativa. Existe uma grade de codificação semântica, uma espécie de modelo das reações entre a estrutura social e as categorias linguísticas.
Chomsky afirmou que existe uma distinção entre competência e execução, ou seja, a tácita compreensão do sistema de regras linguísticas e o uso essencialmente social que se faz de tal sistema de regras. A competência diz respeito ao homem livre das restrições conceituais, enquanto a execução é relacionada ao homem limitado às restrições relacionadas que determinam os seus atos linguísticos. A noção de competência de Chomsky é platônica, ela tem a sua origem na biologia do homem. Não existe diferença entre os homens no acesso ao sistema de regras linguísticas. Todos os homens têm igual acesso ao ato criativo representado pela linguagem. A execução, no entanto, está sob controle do social, é um ato culturalmente específico que se refere a trocas linguísticas específicas. É a tragédia humana, a potencialidade da competência e a degeneração da execução.
O sistema de classes influenciou a distribuição do conhecimento ao longo da história e, como avaliou Labov, existe uma “estrutura sociolinguística”, na qual se percebe o aspecto da variabilidade como um fenômeno sistemático, a correlação entre variáveis linguísticas, contextos de uso e variáveis extralinguísticas, ou seja, a posição dos falantes na escala de estratificação social. Existem regras que permitem ao falantes e aos ouvintes produzir e entender um discurso como uma unidade coerente e não como um conjunto caótico de frases. É a felicidade dos atos linguísticos.
Não é possível entender os progressos na compreensão do mecanismo de transformação linguística sem um estudo profundo dos fatores sociais que motivam a evolução linguística. Quanto maior o nível cultural do falante maior é a planificação verbal, os argumentos mais abstratos, opiniões mais objetivas, conexões mais lógicas, e assim por diante. A dificuldade de expressão, por outro lado, oprime a identidade e fragmenta o pensamento. Permite ao homem se manter vivo dentro da sua comunidade ou do mundo, mas principalmente para si mesmo.
O indivíduo quer ficar dentro da história, quer se manter vivo diante da morte da palavra, da incapacidade de expressão. O aprendizado escolar não é suficiente para atender às necessidades de linguagem da sociedade atual e a dependência da palavra pode ser também uma dependência econômica e social. A ausência do domínio da linguagem é como a falta de dinheiro na conta bancária, é como o trabalho irregular, a impossibilidade de comprar a casa própria. Mesmo após a revolução cognitiva, a discussão constante sobre os avanços na educação, a marginalização e a discriminação persistem. Neil Postman afirma que não é possível o desenvolvimento antes de melhorar uma escola e a comunidade onde ela está inserida e enquanto não melhorar a sociedade da qual derivam os seus valores.
A escola é um meio de comunicação porque fornece instrumentos para a compreensão dos outros meios. A escola é capaz de propor um diferencial, de oferecer aquilo que não pode acontecer ou simplesmente não acontece na cultura. A instituição escolar é o principal transmissor da linguagem, ensina a ler, a escrever, a se exprimir. A língua não é somente um meio de comunicação, mas é também um mecanismo de percepção, aprender uma língua e as suas possibilidades de expressão é uma garantia de estar conectado profundamente com os próprios sentidos, de ser capaz de decifrar os sinais.
A pobreza pode ser um empecilho ao conhecimento, uma barreira para a liberdade de pensamento. A falta de dinheiro pode impedir que as ideias sigam seu fluxo porque o cérebro não é habituado a imaginar em segurança. A própria definição de conhecimento existe em função da forma, da amplitude, da violência, da direção e acessibilidade da informação. A consciência que o papel da informação é essencial no processo democrático para a desigualdade é um passo decisivo para a reestruturação de uma sociedade levando em conta que a pobreza é um obstáculo, mas não um limite ao conhecimento.