A origem e o desenvolvimento das desigualdades

Será que aqueles que têm sucesso, poder e dinheiro valem mais do que quem têm dificuldade de acesso aos serviços básicos, como saúde, educação e informação?

Já na Grécia Antiga admitia-se a disparidade entre seres humanos. Alguns nasciam para dominar, outros para serem escravos. Assim se justificava a concentração do poder e muitas vezes a recusa ou temor em mudar a própria situação. O filósofo Aristóteles falava de duas formas de desigualdade na espécie humana. Uma seria natural ou física, determinada pela natureza; a outra seria política e moral, dependente de convenções.

Existiria uma relação entre as duas formas de desigualdade? Aqueles que mandam são melhores do que aqueles que obedecem? A disseminação da força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a virtude não se encontram nos indivíduos na mesma proporção do poder e da riqueza. E é nessa distribuição desigual que encontra-se a origem da desigualdade.

Platão dizia que ao se “disseminar” ideias o diálogo fica mais difícil, porque o pensamento substitui o afeto. Jesus propunha ficar atento às ovelhas desgarradas e jogava com as parábolas para convencer. A capacidade de comunicação, de usar a palavra como transporte do pensamento, reflete a desigualdade. Tem quem convence, quem é convencido, quem ama, quem determina.

Na fundação de Roma sentiu-se a necessidade de dividir o exército em três classes de acordo com a origem dos seus soldados. Mas uma tribo cresceu mais que as outras. Para evitar a desigualdade, o rei Servio Tullio decidiu fazer uma nova divisão espalhando os seus súditos pelas quatro colinas urbanas de Roma. Sem levar em consideração a origem. Cada um ia para um canto e não tinha direito de trocar de tribo.

O método da separação para controlar o perigo do aumento da condição de desigualdade permitiu manter um equilíbrio no início do Império Romano e deixou até hoje o legado dessa experiência como uma das possibilidades de gestão dos processos de risco de instabilidade gerados pela desigualdade.

As favelas dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento são um exemplo contemporâneo dessas divisões, assim como os bairros de imigrantes na Europa, os guetos nos Estados Unidos. O acesso aos serviços são diferenciados entre os que vivem nessas zonas e os que estão nas áreas urbanizadas. Como demonstra o antropólogo Roberto Da Matta, são difíceis as possibilidades de matrimônio ou amizade entre esses indivíduos.

A desigualdade na cidadania não está somente na ocupação do território é um elemento de reflexão presente nas mais diversas sociedades e que aparece também na educação, nas possibilidades de desenvolvimento profissional, no acesso à informação. Uma análise realizada por Ennio Pattarin, na Itália, demonstrou que a concentração de sujeitos em situações problemáticas em um mesmo quarteirão aumenta o risco de marginalização e de delinquência. Nos quarteirões em risco as políticas de distribuição de moradia concentraram as famílias mais problemáticas, às vezes no mesmo prédio, assim como as especulações imobiliárias em áreas de balneário, de risco, etc. Essas ocupações territoriais criam formas de isolamento social que impulsionam a desigualdade.

Rosseau nos lembra que na Idade Média o conceito de representação política e de igualdade sofre a influência do Corpus Iuris civilis ou o Corpus Iuris Iustinianeum — o material normativo e jurisprudencial do direito romano criado pelo imperador Justiniano para reorganizar o sistema jurídico do Império e é a base do direito de muitos Estados modernos. Na Grécia aristotélica, a desigualdade era axiomática, no sentido de que os elementos da sociedade eram diferentes e a ordem política consistia em uma hierarquia das diferenças.

A assimetria do poder representada nessa hierarquia permite interpretar a cidadania aristotélica como uma dicotomia entre o cidadão que pode se aproximar do poder e aquele que não era considerado cidadão. A reflexão medieval, aproveitando da distinção entre civis simpliciter e civis secundum quid inclui no conceito de cidadania uma multiplicidade de diferentes posições subjetivas. Dessa forma nos deparamos com uma visão hierárquica e inclusiva da cidadania. Ninguém existe de forma autossuficiente, mas nasce como um indivíduo diferenciado dentro de um corpo unitário e articulado — cuja força é ter, como substrato da hierarquia, um direito compartilhado.

Os cidadãos da sociedade medieval estavam sob a mesma lei, o ius proprium da cidade, e a naturalidade da hierarquia não permitia o aparecimento de um eventual déficit de representatividade, mas somente aquele da subversão da ordem, identificado nas agitações da coletividade ou no exercício tirânico do poder. A representatividade na Idade Média é declarativa porque é originária de uma posição hierárquica natural — e não constitutiva — e é produto de um ato de vontade.

A metáfora do corpo político triunfa a partir do momento que exprime um sentimento de pertencimento. O Feudalismo, como sistema político econômico e social do Sacro Império Romano, é essencial para compreender como se desenvolveu na Idade Média a transição entre a uniformidade do império e o nascimento dos estados nacionais. A estrutura feudal não retirou completamente a autonomia das realidades locais. A ligação do cidadão com a coletividade mantinha a ordem necessária, controlando os instintos individuais e muitas vezes chegando a justificar as situações de desigualdade.

Com o Iluminismo essa justificativa não encontrará mais um porto seguro e a ideia de igualdade ganhará mais espaço no debate sobre a condição humana, elevando a educação para um posto de relevância na estrutura social. A educação será o instrumento de luta contra a desigualdade.

Como observa Michel de Certeau, a educação tem um caráter ambivalente. Rosseau, no seu “Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”, de 1754, dizia que a natureza do homem não é tanto ser bom, mas ser dotado de tendências e instintos positivos. Pela sua natureza o homem é aberto à relação intersubjetiva e é solicitado, pelo instinto perfeccionista, ao seu próprio aprimoramento. A vida social não seria somente um pacto, um contrato. A vida social é uma rede bem mais complexa de inclinações, necessidades, sentimentos. É o egoísmo e a vontade de poder que cria o conflito social. O desejo da propriedade privada é a origem desse mal.

A propriedade privada produz, de fato, uma desigualdade econômica que tende a coincidir com a desigualdade social e política. Quem possui consegue também o poder. O poder, em uma espiral perversa, gera outro poder. Os proprietários determinam um sistema jurídico de conservação da força e da autoridade e a perpetuação da desigualdade.

Quanto mais eu tenho, mais liberdade conquisto. Quanto mais sei, mais posso fazer. Sobe o valor da educação e da informação.

Em “O Contrato Social” Rosseau propunha a criação de uma sociedade livre e igualitária, contrastando com as idéias do jurisnaturalismo moderno, representado por Hobbes, sobre a cessão geral de todos os poderes por parte dos indivíduos como garantia da tutela da igualdade. Se por um lado o poder comum e a representatividade, propostos por Hobbes, são a origem do conceito de opinião pública com o qual trabalhamos atualmente, para Rosseau o desejo de emancipação para a criação de uma sociedade livre e igualitária é uma forma de regenerar a humanidade. O homem deve permanecer livre, apesar das renúncias na vida, propunha Hobbes. Rousseau alertava, no entanto, que essas renúncias não devem jamais serem totais se pretendemos manter um certo grau de liberdade.

Na opinião de Hobbes somente uma cessão geral de todos os homens teria garantido a tutela da igualdade. Ele pensava em uma alienação total e considerava que a comunidade fosse a única forma de transformar a sociedade em um corpo saudável. A cooperação entre os indivíduos permitiria a transformação da sociedade. E permaneceriam livres não somente porque conquistam um estado de absoluta igualdade recíproca tutelada pela lei, mas também porque participam ativamente da vida comunitária, visto que dirigem diretamente o poder político. Ser governado é uma necessidade, mas governar deve ser um direito porque o homem é antes de tudo consciência e reflexão. E nesse sentido o homem é capaz de não pensar somente em si mesmo pelo bem da sociedade onde vive.

A vontade geral é a voz da coletividade, a expressão dos interesses socialmente constituídos, e o indivíduo que usa a parte mais racional e moral de si mesmo garante a obediência que permite a verdadeira liberdade. Em um certo sentido, no livro “Emílio” Rosseau dá prosseguimento a essa ideia configurando a educação como a ação de transformar o homem em um ser em condições de viver e conviver de acordo com os preceitos da justiça e da razão.

Partindo desse pressuposto, Rosseau chega a afirmar que a desigualdade tem origem no nascimento das ciências e das artes que levaram a vícios e afastaram o homem da sua condição primitiva. O predomínio da tecnologia da nossa era nos vicia em trocas de mensagens, em consultar as redes sociais, nos afasta do primitivo que é o olhar, o estar presente.

Mas o resultado é também o nascimento da propriedade, porque divide o homem entre rico e pobre, ou seja, entre o proprietário e o trabalhador, e também pela instituição da magistratura, que faz a distinção entre potente e fraco e se ressente também da passagem do poder legítimo para o poder arbitrário porque é a origem dos casos de escravidão. De acordo com Rosseau, desigualdade e injustiça são frutos da corrupção e de uma hierarquia mal organizada. Vivemos sempre no risco de que a organização social corrompa a natureza humana sufocando a sua potencialidade.

A visão de Rosseau obviamente é muito rígida para refletir sobre o problema da desigualdade na sociedade contemporânea, mas nos ajuda a avaliar as origens do fenômeno e como isso se desenvolve no pensamento político ocidental. A figura do “bom selvagem” certamente não faz parte das reflexões sobre a pobreza nos autores que vêem o direito como a base das relações na sociedade. Voltaire, pelo seu lado, criticava Rosseau porque ele negava a representatividade da vontade geral.

Para contrastar as ideias de Rosseau, encontramos no pensamento liberal de Botero, por exemplo, a defesa da razão de estado, ou seja, a necessidade de um domínio exercido sobre os povos para controlar a crise comando-obediência que a pobreza pode provocar. Isso porque, como acreditava Botero, “os pobres não têm nada a perder e desejam fatalmente novidades”. Nada mais contemporâneo diante da constante oferta do consumismo.

A razão de estado — ou “conhecimento” — interessa a eles, os inclui na vida de sociedade com a obrigação de fazer qualquer coisa e, dessa forma, mantê-los ocupados. E essa apatia social ajuda a imprimir um caráter de desigualdade às sociedades liberais.

Se pensarmos que as causas da degeneração humana é a desigualdade, como acreditava Rosseau, será mais fácil compreender a necessidade de um processo de reconhecimento da consciência, como sugere o filósofo alemão Hegel, ao contrário da sugestão liberal de Botero. Não será a obrigação de “fazer qualquer coisa” a manter a sociedade em equilíbrio, mas a autoconsciência.

A questão social se torna central na reflexão política porque é imprescindível para a construção de uma sociedade civil baseada na consciência da ética. Nesse sentido, mas sempre de um ponto de vista liberal, o alemão Humboldt defenderá a liberdade política e a educação para um estado de razão. George Steiner, no primeiro capítulo da sua “Gramática da Criação”, afirma que a difusão da escolarização, do conhecimento científico e tecnológico e dos seus resultados, da liberdade de movimento e dos contatos entre as comunidades seria acompanhada por um aprimoramento contínuo da vida civil, da tolerância política, da ética individual e pública.

Mas a fratura mais importante na reflexão política sobre o problema da desigualdade no mundo ocidental será a crítica de Karl Marx à alienação e à economia política e a sua posição radical de defesa da abolição da propriedade privada. O materialismo histórico, ou seja, a relação entre a história e as ciências, e a crítica da ideologia, porque essa legitima as relações de domínio, são a base do seu pensamento que na prática é uma proposta de ditadura revolucionária do proletariado. A mudança das relações de força não muda porém o risco da mediocridade e da uniformidade, como advertia Tocqueville, porque levam do mesmo jeito ao conformismo.

Na escritura da história a narração das diversidades aparece com cores mais fortes. Os problemas sociais acontecem por conta dessas diferenças, por isso entender a história é essencial. A palavra é a medida do desenrolar da história. E a comunicação tem uma posição essencial. Roland Barthes defendia que as palavras não podem mais ter uma relação somente com as coisas as quais fazem referência, elas são instrumentos formuladores de sentido. E nem sempre exibem o real. E não são corretamente interpretadas no virtual.

Parte-se dessa exposição para concluir que, na narrativa da história, aquilo que não foi dito no discurso é o elemento que revela as possibilidades em entender a origem e as causas da coerência dos fatos. A capacidade de ser coerente depende do desenvolvimento do uso da palavra.

Antonio Gramsci falava que todos os homens são intelectuais, mas para o uso da palavra e o poder simbólico que a palavra contém nem todos os homens vão conseguir ter a função de intelectuais na sociedade.

Para Gramsci, os intelectuais podem ser orgânicos ou não, mas não podemos falar de não-intelectuais porque esses não existem. O conhecimento é um direito que deve ser dado a todos, mesmo se somente alguns transformarão isso em ação. Para Gramsci, a educação seria a base desse direito. O jornalismo seria a possibilidade concreta de atualização constante da intelectualidade dos indivíduos.

Michel de Certeau afirma que Gramsci, ao propor a possibilidade de “intelectuais orgânicos”, quebra com o engessamento da posição social e o discurso. Existe uma possibilidade de contar a sua história por meio da produção intelectual, independente da sua posição social e do respaldo econômico ou de poder.

Os intelectuais orgânicos são diferentes na forma de usar a palavra e a narrativa dos outros, eles se apropriam, mas encontram dificuldades de elaboração e divulgação. Mas todo ser humano tem a capacidade de acordar a consciência, mesmo aquele que não tem poder econômico e social, mas que deseja escrever a história, de não ser só consumidor.

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