Conhecimento e consciência

A comunicação, na asserção teórica como uma transferência de informação de um sujeito a outro, ou seja, a teoria matemática da comunicação, é o paradigma a ser enfrentado para evidenciar o conhecimento e a consciência como instrumentos e táticas para superar os efeitos negativos da fragmentação das informações.

A investigação sobre a forma de construção do saber, que Umberto Eco chamava de “saber enciclopédico” nos permite trafegar entre os diversos campos do saber e nos permite, consequentemente, desenvolver a capacidade de perceber. Na sua análise sobre o saber na sociedade pós-moderna, Pierre Lévy afirma que é preciso uma nova pedagogia que favoreça ao mesmo tempo aprendizados pessoais e coletivos em rede. O professor deve se transformar em um animador da inteligência coletiva dos seus estudantes e não ser um fornecedor direto de conhecimento.

O imaginário coletivo formado pela literatura e pela informação é o resultado da construção desse saber. O progresso intelectual a ser enfrentado, já dizia Gramsci, é usar tanto a mitologia quanto o trabalho intelectual para distinguir e fazer crítica social. A argumentação por meio da comunicação deveria oferecer a consciência da palavra e identificar os sinais do poder. A ideologia escondida na linguagem pode levar tanto para a liberdade quando para a escravidão do pensamento. Michel De Certeau propõe inventar o quotidiano usando estratégias e instrumentos para a construção do saber além do consumo de massa, da opinião pré-estabelecida.

Antes de tudo é preciso entender as palavras, e assim ser capaz de reconhecer os limites e as possibilidades de interpretação que os leitores encontram nos seus passeios livres pelas narrativas, sejam elas da realidade ou da fantasia. Essa prática da liberdade acontece, segundo Paulo Freire, ao reconhecermos a diferença entre os conhecimentos, ou seja, aprender a identificar conhecimento e interesse. Isso depende principalmente de um processo em que alfabetizar é descobrir também o poder da palavra para desenvolver uma gramática da criação. Confrontando as ideias de Freire e Steiner nos damos conta que essa gramática é o trabalho constante de enfrentamento entre os fundamentos da cultura com as novas informações recebidas todo dia. A formação da mentalidade submetida é identificada na cognição e no processo de aprender ao qual cada indivíduo percorre. Assim, a construção do saber seria uma espécie de arte de mudar o cérebro explorando a biologia do aprender.

Mas é na desordem quotidiana da fragmentação da informação que podemos encontrar as possibilidades de criar uma relação crítica com a narrativa dos fatos. Por isso existe a necessidade de um maior conhecimento do mundo, um mais amplo conhecimento enciclopédico essencial para chegar ao leitor modelo, na terminologia usada por Umberto Eco, aquele leitor que supera o hábito, o óbvio e reflete, os nossos padrões estabelecidos de pensamento. Apesar do hábito da terra de girar em torno do sol, eu posso mudar a minha forma de fazer café, exemplifica Eco. É uma discordância que é o princípio da transformação do hábito em substância, a substância aristotélica de dar às coisas um significado.

O ponto de partida pode se encontrar na possibilidade de ir além daquilo que se espera, identificando as ansiedades dos quotidiano e fornecendo as capacidades de interpretantes, o que nos leva a saber “algo a mais” sobre o que acontece. Na desordem da nossa percepção quotidiana, Benedetto Croce identifica um ponto de apoio ou meio pedagógico, ou seja, tudo o que temos necessidade para avançar nas nossas tentativas de descobrir “algo a mais”. Quanto maior é a nossa capacidade de superar o caráter mediano da nossa existência intelectual, maior são as nossas possibilidades de vencer os desafios que o mundo da tecnologia e da cultura de massa nos propõe. Charles Pierce avisava que saber o que pensamos, ser dono do que entendemos, é uma sólida base para um pensamento grande e poderoso.

Uma autorreflexão de crítica social constante seria o componente vital para essa “guerra de posições” a que se referia Gramsci para que ganhássemos esse poder de consciência. A desigualdade social se fortalece justamente nessa diferença sobre o uso que somos capazes de fazer com os nossos saberes. O acúmulo de dinheiro no mundo atual é resultado principalmente do acúmulo de saber e de informações.

As palavras não provocam somente pensamentos, mas também posições, tem um significado social reconhecido como “bom senso” no nosso quotidiano desordenado. A palavra é distribuída e assimilada de forma fragmentada, como em um armário onde objetos diferentes convivem e se integram. Somente quem conhece a história daqueles objetos, uma bola rosa e amarela com um buraco causado por um espinho numa tarde no parque, um disco de vinil de Chico Buarque que pertenceu a avó materna, tem a capacidade de organizar as informações e transformar em um processo cognitivo de valor cultural e social – mesmo se a narrativa seja fundamentalmente pessoal.

Tudo muda quando o indivíduo é capaz de “perceber”. Perceber é aprender um fato que tem essa ou aquela natureza e por isso vale a pena pensar e julgar. Nem mesmo a mais leve impressão, o menor fato, é percebido por nós se não foi antes pensado. Isso quer dizer que em primeiro lugar é preciso estar disponível para perceber. Mas não é apenas na capacidade simples de perceber, por exemplo, que a bola tem um furo, porque não sabemos contar a sua história se nos falta as informações precedentes sobre aquela tarde no parque.  A “percepção” do buraco pode acordar interesses para chegar àquele conhecimento. Assim, pensar e julgar é um caminho para superar a fragmentação na desordem quotidiana das informações.

O saber é uma necessidade, algo que movimenta a nossa inteligência até se tornar uma necessidade. É a possibilidade de transitar por meio de dados disponíveis, de informações organizadas, do chamado saber enciclopédico. Saber não é aprender tudo, mas ter em mãos os instrumentos disponíveis para saber como chegar na informação. E mesmo se o acesso é impossível ou difícil, por razões econômicas, sociais ou políticas, o valor de tal saber não é descartado, mesmo se estão fechados, os caminhos da pesquisa estão indicados.

São as estratégias que se articulam com as táticas do quotidiano. Com o conhecimento de qual caminho seguir podemos criar percursos e identificar o que nos interessa. Discordar apenas não nos coloca em pé de igualdade com os outros, simplesmente nos deixa isolados se as táticas não estão disponíveis. Quando somos capazes de “perceber” os nossos hábitos, maior é a nossa percepção que podemos modificá-la. Perceber quais são as nossas formas de fazer as coisas é um jeito de dar um novo significado a elas.

O importante não é saber tudo, mas ser capaz de procurar a informação que desejamos ou temos necessidade. Ter a chave para o conhecimento é saber o caminho certo para chegar à resposta que procuramos. A educação e o saber recebido na vida quotidiana são nossos instrumentos de base para praticar a liberdade de escolha em ser um simples consumidor de informação ou ser um cidadão. É a nossa desordem cognitiva que nos atrapalha a reconhecer e perceber as nossas possibilidades. Não é possível mais eliminar o excesso de informação ou se proteger dos ataques, é fazer com que a capacidade de perceber, ou seja, pensar e julgar, se acrescentem ao desenvolvimento das possibilidades de uso do saber.

Existem várias formas de fazer e podemos sempre mudar o que estamos fazendo. As coisas podem ser interpretadas como algo a mais usando a persuasão da retórica, o prazer concedido pela poética e a sedução do erotismo. A comunicação é a arte de distribuir informação que, bem realizada, como arte que pode ser, coloca em discussão nossos esquemas de percepção, nos convidando a reconhecer que, em outras circunstâncias, as coisas poderiam aparecer de outro jeito. 

A arte precisa do estranhamento, dizia Brecht, pode ser educação para a consciência. Quem se propõe a comunicar deveria ter a responsabilidade de não ser apenas um executor, mas um intérprete da realidade que saiba usar a criatividade para acordar a consciência do conhecimento. A media literacy, ou seja, a alfabetização aos meios de comunicação, é um dos percursos para aprender a interpretar os significados das mensagens que encontramos. Nós construímos essa perspectiva a partir de estruturas de conhecimento, nós usamos nossas habilidades para investigar. É uma necessidade de sobrevivência intelectual na era da tecnologia. Família e escola são essenciais nesse processo. A escola oferece as bases da linguagem formal e a estruturação do pensamento, mas é na família, e depois na coletividade, grupos de amigos ou no trabalho, a performance individual se torna mais rica. As pessoas com alto nível de media literacy se tornam mais potentes socialmente.

Por outro lado, aqueles que não recebem esses instrumentos de sobrevivência tropeçam diante dos noticiários na TV ou lendo uma revista. A incapacidade de criar significado a partir dos dados recebidos é um obstáculo ao uso complexo das competências e de formação não apenas de uma opinião, mas também de uma visão de mundo e de uma trajetória de vida e pode ter influência na marginalização social, na desigualdade econômica. 

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