Estratégias e táticas para o conhecimento

A educação aos meios de comunicação consiste em criar estratégias e táticas para lidar com o conhecimento na era da tecnologia. Criamos trajetórias indeterminadas com os saberes recebidos ao longo da vida e a estratégia tem sido de criar relações de força com os outros, determinadas pelas instituições. As táticas são uma reação à fragilidade diante do conhecimento estruturado e a ausência de poder. Um fragmento que transforma em relação global o que foi colocado em evidência e transformado.

Em volta dessas práticas tem algo que sempre escapa, algo que não pode ser ensinado e deveria ser praticado. A linguagem é a prática da arte de existir integralmente, a arte do “dizer”, arte de pensar e fazer. É a arte da memória e da ocasião, de aproveitar a oportunidade e com pouco trabalho conquistar um grande efeito. É a arte de passear com liberdade. A narrativa se desenvolve abrindo fronteiras, espaços livre que autorizam as ações posteriores.

Escrever é a prática moderna do mito porque serve para organizar o saber e revelar até onde vai a ambição para fazer a história. O mito é um discurso fragmentado que se articula em práticas heterogêneas de uma sociedade através do símbolo. A prática de escrever levou a afastar a origem não mais para o que é contado, mas na atividade múltipla de pensar no produto do texto e de sentir a sociedade como texto. O progresso ocidental dá valor à escritura, que é o relato que faz uma travessia, instaura uma caminhada e transgride.

Em uma sociedade cada vez mais determinada por modelos escritos (científicos, econômicos e políticos), os produtores da escrita têm a pretensão de “informar” as pessoas, de “dar forma” às práticas sociais. É uma elite que acredita que existe uma necessidade de educar os espíritos e os corações, fazendo com que sejam semelhantes a si mesmos, mas na verdade os produtores da escrita deveriam se empenhar em fazer com que seja semelhante aquilo que é àquilo que se percebe.

No século XIX o livro era visto como um reformador da sociedade e se acreditava que a escola para todos transformasse hábitos fazendo com que as pessoas fossem mais semelhantes. Esse mito da educação deu origem a uma teoria do consumo que se apropria das estruturas políticas culturais. Os meios de difusão do saber assumiram o lugar do conteúdo e a preocupação é maior em relação à forma do saber.

A leitura é apenas um aspecto parcial do consumo, mas o seu papel é determinante em uma sociedade em que a escrita tem o poder de reformar e definir as estruturas sociais e políticas. Porém somos designados apenas à leitura no mundo dos espertos da produção escrita, porque depois do período de frequência da escola não é mais solicitado ao indivíduo que escreva. O aprendizado da leitura não acompanha o da escritura.

Para interpretar, compreender ou julgar o indivíduo tem necessidade de memória cultural, que é quase sempre oral e depende do habitus, que é uma autoridade nem sempre facilmente percebida. A escritura detém o poder e a leitura parece ser uma ação aparentemente “inferior”. O trabalho de escrever pertence aos manipuladores da linguagem. Na definição de Michel de Certeau, ler é uma peregrinação por um sistema imposto, mas toda leitura modifica o seu objeto, existe uma produção própria do leitor, inventa, combina e cria.

A investigação sobre os diversos modos de ler e escrever, a autonomia do leitor, espaços de jogos e de astúcias nos aprendizados, o leitor deveria ler si mesmo no texto, aprender a estar dentro e fora ao mesmo tempo, aprender a jogar com os fragmentos, que pode ser um texto produzido pelas suas reações ou recordações.

O corpo se afasta do texto, a corporeidade é reduzida ao trabalho do cérebro, as práticas de leitura dependem da maneira como os textos podem ser lidos, e lidos diversamente por leitores que não compartilham as mesmas técnicas intelectuais, que não estabelecem uma mesma relação com a escritura, que não atribuem nem o mesmo significado nem o mesmo valor a um gesto aparentemente idêntico que é o de ler um texto.

A leitura não é apenas uma operação intelectual abstrata, ela é resultado do uso do corpo, uma inscrição no espaço. Platão, no Fedro, demonstra como o diálogo é útil ao desenvolvimento das capacidades cognitivas e, portanto, das habilidades de ler e consequentemente de escrever. Ele afirma que a potência do discurso é uma forma de conduzir as almas, mas o desenvolvimento só acontece realmente quando o indivíduo é capaz de reconhecer as várias espécies de almas que existem no mundo. Existe um condicionamento da leitura entre constrição e invenção que delimitam a frequência e a produção do sentido e a invenção, que são os recursos que a liberdade do leitor é capaz de ativar, uma liberdade sempre delimitada por uma rede de dependências múltiplas, mas que pode ignorar, modificar ou subverter os dispositivos destinados a reduzi-las. 

Para chegar a essa sociologia das diferenças na leitura os históricos percorreram o desenvolvimento do ato de ler na história. O acesso generalizado à competência de leitura criou também uma fragmentação mais extrema das práticas. A tipologia dos modelos dominantes de relação com a escritura na sociedade contemporânea leva a uma dispersão dos usos que corresponde aquela do mundo social.

A tradição oral predominava na cultura grega, o Kleos, o som, na sua sonoridade a palavra é eficaz, é ela que faz com que os heróis existam. A valorização da palavra falada no mundo grego leva à conclusão que a leitura a alta voz seja o modo original de leitura, o verbo grego nemein tem o sentido de ler como hipótese de distribuição – que é o sentido literal desse verbo – mas é também uma auto-distribuição quando é usada na forma ananemein, quando o leitor se inclui no ato de leitura, o que significa “distribuir se incluindo na distribuição”. 

O leitor que distribui o que está escrito a si mesmo faz um esforço, exerce um trabalho. O leitor é um instrumento a serviço do escrito. O ato da leitura pode ter um caráter de trabalho na mente do indivíduo grego e essa percepção permanece no tempo. Os romanos adotaram o termo legere, o coletar. Ser lido, portanto, significa exercitar um poder sobre o corpo do leitor na distância do espaço e no tempo.

No mundo grego e romano se difunde o “objeto falante”, que é a manifestação do eu por meio do objeto que fala ao leitor e uma tentativa de dar voz à escritura. É a leitura silenciosa no contexto cultural da época da lei (nomois), um campo voltado para a leitura. A voz da consciência pede a interiorização da voz do leitor, que pode ler na própria cabeça. Mas para o leitor que lê pouco ou às vezes, a decifração lenta e hesitante da escritura não terá o poder de fazer nascer a necessidade de uma interiorização da voz, o instrumento através do qual a sequência gráfica  se relaciona com a linguagem. A interiorização da leitura no espaço mental na Grécia Antiga não é predominante, mas a ideia do cidadão no mundo romano é baseado nessa nova forma de agir em relação à escritura.

No Fedro, Platão afirma que a presença do outro se perde com a escritura porque as almas se colocam a uma certa distância e aparece um vazio entre as pessoas. A crítica de Sócrates é parte de uma reflexão mais ampla sobre a instabilidade da relação entre as pessoas, entre as almas, entre os corpos. A questão não é o encontro entre as mentes, mas a união dos desejos. Essa concepção de comunicação diz respeito ao equilíbrio e ao vigor das relações, as mídias são sistemas de relações e não somente canais de transmissão. É o “Eros” das massas, é a persuasão.

Na República Romana, o nascimento da leitura doméstica acompanha ao nascimento do que é privado. Ler e estudar na Roma Antiga era um ornamento das classes cultas. É quando as mulheres começam a se aproximar da leitura. Como ornamento, a leitura poderá ter o caráter apenas de “distração”, de consumo, caso o leitor não tenha discernimento sobre qualidade e defeitos, ser capaz de perceber mensagens e fazer relações, contextualizar. A forma de ler é, desde o período romano, um modo de identificar socialmente um indivíduo.

Na Idade Média ler tem um caráter de tentativa de salvação da alma. O leitor tinha um corpus de preceitos gramaticais, herdados da Antiguidade tardia, que servia para facilitar a leitura, mas não para estimular um verdadeiro e próprio interesse pela língua. O homem estava atrás da “Palavra Divina”, da comunicação com Deus. A tradição da Igreja transformou a palavra escrita no meio para transmitir a autoridade da verdade do Cristianismo. As letras se tornaram sinais das coisas em uma linguagem visível que se comunica diretamente com a mente por meio do olhos.

O leitor que aprende a enfrentar o texto como uma conversação, um diálogo, compreende os pensamentos que se escondem atrás do significado superficial. O tratado de hermenêutica de Santo Agostinho De doctrina Christiana, muito usado na Idade Média, defendia o uso da alegoria como dom do Espírito Santo para estimular a nossa compreensão e ter uma melhor consciência da verdade. Esse desenvolvimento do ato de ler mostra que em nenhum outro âmbito a história se repete como na história da leitura, onde cada nova geração de leitores percorre novamente as mesmas etapas de aprendizado e de experiência do processo já atravessadas pelos seus predecessores. Mas algumas gerações produzem leitores com experiências específicas, que estimulam novas evoluções, refletidas sobre as páginas lidas. Assim na era da Escolástica a leitura será um exercício com leis próprias, reguladas antes pela escola e depois pela universidade, saindo assim dos muros dos monastérios.

É a consciência do ato de ler, do desejo de uma formação cultural pessoal. A relação entre “ler” e “ensinar” no verbo latino legere deu origem, na Idade Média, ao termo lectura, criação medieval que significa expor uma ideia e também a difusão da necessidade de explicar e refletir. O texto é fragmentado para uma melhor compreensão do seu significado, aparecem os parágrafos, capítulos, índices, que facilitam a consulta rápida de uma obra. 

Desde o século XII elaborou-se um método de leitura que previa três níveis. A explicação gramatical palavra por palavra (a littera), o comentário literal ou a paráfrase destinada a extrair o sentido geral e os tons da frase (o sensus) e por fim a explicação aprofundada e pessoal do professor em relação ao trecho escolhido (a sententia). Essa técnica ajudava os estudantes a ter uma melhor compreensão do que liam.

A religião, por meio das ordens de mendigos do Cristianismo, ajudou muito na evolução da composição de enciclopédias que serviam para atender novas necessidades do ato de ler. O saber será o objetivo principal e a leitura mais utilitária, ou seja, é necessário dispor de instrumentos para ajudar a fazer da leitura um trabalho mais complexo e menos direto. O problema dessa nova aproximação ao saber é o seu aspecto fragmentário, que deixa a sua marca na prática de leitura. O acesso ao escrito original será reduzido, o leitor descobre que pode encontrar a informação mais facilmente.

No final da Idade Média, de acordo com as observações de Paul Saenger, a combinação entre a separação das palavras e a leitura silenciosa ajudou a extrair o significado do texto e reduziu a dependência da memória como componente de leitura. Ler passou a ser menos trabalhoso e a possibilidade de confiar a leitura apenas aos olhos ofereceu uma liberdade de pensamento que antes não era possível. A leitura privada se torna assim uma forma de pensar independente, sem a participação direta do poder público, seja da escola ou da Igreja.

O controle sobre a leitura é uma forma de manter sob controle a sociedade porque a difusão das ideias é sempre um foco de desequilíbrio na relação de forças. Compreender o sentido do que se lê abre novos espaços de leitura e de atuação. Nesse sentido é interessante observar o ato de ler, por exemplo, dentro das comunidades hebraicas na Idade Média. O problema da leitura para os judeus, assim como foi para os cristãos, é a percepção por parte das elites ou dos aspirantes à exercitar a autoridade e o poder de um dever. O dever de impor o controle sobre a difusão das ideias. Exercitar a autoridade quer sempre dizer se perguntar sobre o significado unitário a ser atribuído às relações de oposição entre quem controla e quem é controlado. 

No Humanismo será defendido o texto não mediado e o resumo como prática de leitura será recusado. O leitor deve aprender a compreender as escolhas verbais e figurativas do escritor como produto das regras da retórica formal. Aprendia a procurar as alusões, a tratar cada texto principal como lugar de ressonância em que as palavras se relacionam. A leitura nesse período tinha metas precisas tanto no campo político quanto intelectual e na Reforma Protestante será ainda mais potente. A prática da leitura se torna mais ampla e a relação com o texto se transforma.

A influência da leitura na vida oferece mudanças sociais e de comportamento. A assimilação de um texto por um leitor é um trabalho pessoal de escolha e reestruturação das informações escritas. Ler é uma perseguição. Uma sucessão de palavras, linhas e páginas percorridas em linha reta do começo ao fim em que o leitor não é, portanto, menos livre para descobrir esse espaço. Não é uma posição passiva diante do texto. Ler é uma espécie de poder especial para compreender o mundo.

No Renascimento o livro e a leitura aparecem como mercadoria. É o advento da imprensa que se fortalece, as pessoas se interessam por ler, desenvolvendo competências, usos, códigos e interesses. A história da leitura é uma narrativa sobre a apropriação dos textos. No século XVII acontece uma revolução da leitura, que será mais extensiva que intensiva, praticada por um público que desejava consumir muita informação e entretenimento. A sociedade burguesa europeia, com o Iluminismo, o seu novo sistema de valores, o seu ideal de igualdade, a noção utilitarista de eficiência e um intenso desejo de cultura que tinha o objetivo de limitar o predomínio da nobreza, mas servia sobretudo para o crescimento social. 

O texto é um bem e, à medida que a tecnologia ganha mais espaço se torna mais precioso. A alfabetização do século XIX democratizou o acesso à palavra, até as crianças ganharam literatura própria com os irmãos Grimm, Charles Perrault e Hans Christian Andersen. Operários passam a ter acesso aos livros com a expansão das bibliotecas públicas. A leitura é reconhecida como uma tentativa de emancipação individual e coletiva, de autodisciplina. Inicialmente pensava-se que o hábito da leitura fosse acalmar as tensões sociais. Dignidade e leitura passaram a caminhar juntas.

Mas as transformações prosseguiram e com o advento dos meios de comunicação de massa e a Internet, a leitura deixa de ser individual e passa a ser um ato coletivo, evoluindo para uma atividade de consumo social e cultural. Acessível a todos, a leitura, no entanto, perdeu complexidade e integridade e criou novas disparidades sociais.

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