Em 1982 foi criado no Rio de Janeiro o projeto “Quem lê jornal sabe mais”, do jornal “O Globo”, o maior do Rio de Janeiro e um dos maiores do Brasil. Era um projeto direcionado para crianças e adolescentes das escolas de ensino fundamental e médio, envolvendo tanto escolas públicas e particulares.
Os professores das escolas inscritas no projeto deveriam seguir uma formação continuada frequentando laboratórios, encontros, seminários e reuniões pedagógicas. Ao fim do projeto, com a duração de um ano, o professor é responsável pela criação de um ponto de referência do jornal na escola, organizando os livros sobre teoria da comunicação que são doados às bibliotecas escolares e sobre a prática da educação aos meios de comunicação, propostas pedagógicas.
Parte-se do princípio que o jornal oferece a história que ainda não está presente nos livros, uma possibilidade de ampliar o saber escolástico. Entre as consequências positivas dessa aproximação do jornal com a escola existe a relativa perda do caráter teórico do saber, que se apresenta mais próximo do estudante, da sua realidade do mundo que está a sua volta. O primeiro passo é mostrar às crianças o jornal e como ele é elaborado a partir das suas seções, a divisão entre artigos de opinião, reportagens e publicidade, fotografias, desenhos, gráficos. Para ajudar o professor o projeto oferece um manual no qual o jornal é investigado junto com as crianças, que assim podem começar a conhecer e compreender o que existe por detrás da notícia.
Durante um ano, 50 escolas da cidade podem participar do programa. Cada escola pode inscrever até três turmas, que recebem assinaturas do jornal em módulos de três fases. A primeira é chamada “fase intensiva”, em que são distribuídas quatro assinaturas do jornal diariamente, durante dois meses, para as três classes. Na fase seguinte, de “manutenção”, durante três meses são oferecidas duas assinaturas para a turma. Depois desse período, as escolas têm direito de receber três assinaturas por dia que serão entregues porém somente nas escolas que se tornaram ponto de referência do jornal na escola. São distribuídos ainda o manual do professor, uma newsletter trimestral, um guia sobre como manusear o jornal e um caderno de atividades para os estudantes. Todo esse material é direcionado para o desenvolvimento das competências de investigação e de crítica das crianças sobre o jornal. Segundo a responsável pelo projeto, Carmen Lozza, essas competências são:
-Não se sentir satisfeito com a primeira impressão. Reler, comparar, analisar, buscar outras fontes.
- Estabelecer vínculos entre as várias impressões sobre um dado texto. Tentar superar, pela reflexão, os pontos aparentemente desconexos e incoerentes (ou extremamente coerentes, vistos por apenas um ponto de vista). Perguntar-se sobre o que os aproxima e afasta, deixando de lado os raciocínios maniqueístas (do tipo “ou isto ou aquilo”). Às vezes numa mesma edição de jornal existem outras matérias (artigos, charges, editoriais, etc.) a respeito do assunto sobre o qual se lê e que o complementa ou questiona.
- Com relação ao jornal como um todo, tentar perceber os destaques e os não destaques. Buscar semelhanças e contrastes, estabelecer vínculos entre as notícias.
- Sobre as causas apresentadas para um dado conhecimento, procurar outros possíveis fatores condicionantes para o mesmo, ou em outras notícias do próprio jornal ou em outras fontes.
- Diante da informação sobre “o que houve”, indagar-se sobre “o que não houve”. Ou sobre o que “pode ter havido também”. Olhar os fatos “pelo avesso”.
- Verificar se a informação dá conta da simultaneidade de fatores determinantes para um dado fato. Lembrar-se que a vida não é linear, mas um tecido onde fatores e estruturas, simultâneos ou não, pesam e interferem. Não cair na tentação, então, de fazer relações mecânicas ou simplistas. Um fato pode decorrer de vários fatores, mesmo que o jornal não dê conta de abordá-los todos. Até porque jornal não é livro nem revista.
- Buscar um conhecimento interpessoal, na troca de ideias com outros leitores.
- Abandonar as generalizações apressadas e as afirmações categóricas e absolutas sobre o texto. Retornar a ele. O conteúdo da matéria significa, de fato, um detalhamento do seu título?
- Lembrar-se de que a nossa sociedade é bastante marcada pelo individualismo, pelo imediatismo, pelo consumismo. Procurar, então, verificar até que ponto o Jornal, como parte dela, confirma tais valores ou tenta superá-los.”
A partir dessa explicação teórica sobre a leitura crítica dos jornais, os professores que participam do programa são orientados a trabalhar com as crianças para alcançar objetivos como: desenvolver o espírito de tolerância em relação aos outros e através de opiniões diferentes; romper o isolamento entre a escola e os fatos do quotidiano; compreender melhor esses fatos e ser mais consciente da sua cidadania; perceber mais claramente o papel da imprensa na cultura contemporânea; ampliar as competências de expressão oral e escrita; incentivar a leitura dos jornais; aproximar a criança ao prazer também das outras leituras.
Ao mesmo tempo, no início das atividades em classe com o jornal, os alunos que participam do “Quem lê jornal sabe mais” são convidados a fazer uma visita guiada à redação do jornal para conhecer pessoalmente a realidade de uma empresa jornalística. Os alunos são levados para conhecer o processo de produção dos jornais e nessa visita os responsáveis pelo jornal mostram às crianças que a presença da informática na realidade da economia mundial tem também efeitos perversos, como a redução de pessoas necessárias para produzir industrialmente um jornal, a necessidade de importação das máquinas tipográficas e o papel do Brasil na situação econômica mundial.
É nesse momento que os estudantes terão informações também sobre quem produz os jornais, ou seja, repórteres, redatores, chefes de redação, diagramadores, designers. As crianças podem também ver como se desenvolve o trabalho quotidiano, entre reuniões em cada seção, o desenho da página, a decisão sobre a publicação ou não de uma notícia. Os estudantes são convidados a perceber como o jornal é uma indústria, que os textos se transformam em páginas e de qualquer forma essa produção interage com o ambiente, o uso de elementos químicos, os dejetos e o tratamento.
Depois dessa apresentação, os estudantes começam a trabalhar em sala de aula com o produto final, ou seja, o jornal. Todos os professores das diversas disciplinas podem usar o jornal como recurso material para suas aulas. O professor de química, por exemplo, pode falar da importância da água para a produção do papel. Na aula de história podem fazer um debate sobre a Revolução Industrial e o atual momento da economia mundial, a partir da visita ao parque gráfico do jornal. No caso específico do jornal O Globo, por exemplo, a máquina de impressão é alemã e esse fato pode servir para falar sobre as relações entre os países, acordos econômicos e políticos. Nas aulas de física pode-se analisar o processo de off-set para promover o estudo sobre a óptica e aprofundar o tema sobre o uso de fontes alternativas de energia, como o gás. A questão ecológica e a preservação do meio ambiente podem ser tema de discussão nas aulas de ciências. Assim como o professor de Literatura pode ajudar as crianças a organizar e escrever fatos e resumos de outras disciplinas.
Paralelamente ao jornal na escola, a visita à empresa e a criação de uma biblioteca de referência nas escolas, o projeto “Quem lê jornal sabe mais” oferece também atividades culturais, como sessões de cinema, apresentações teatrais, concursos, seminários e mostras. As atividades mais interessantes propostas pelos professores são premiadas e expostas. E, no fim, os estudantes que participaram do programa podem concorrer para participar de um projeto avançado de estímulo à leitura do jornal, o “Repórter do Futuro”. Um profissional do jornal é designado para ensinar às crianças como escrever uma reportagem. Os textos mais interessantes são publicados no jornal. Entre as iniciativas do projeto está a publicação de um boletim informativo chamado “Mais Ainda”, que oferece reflexões e ideias sobre o uso do jornal em sala de aula.
Entre os exemplos de atividades desenvolvidas na escola temos o caso da Escola Rio de Janeiro, em que na aula de matemática os estudantes decoraram uma casa recortando móveis e eletrodomésticos das publicidades; aprenderam matemática financeira para calcular empréstimos; aprenderam a perceber a diferença entre as vendas a prazo e aquelas diretas e são capazes de comparar as moedas de diversos países. Na geografia foram realizadas pesquisas sobre meteorologia e em ciências as crianças organizaram um manual sobre doenças comuns na infância.
Em uma das favelas do Rio, a Mangueira, mostrando bem como a questão da desigualdade social é presente e determinante, as crianças usaram o jornal para produzir material reciclado e fazer esculturas de papel, mostrando que além da leitura o jornal pode também se tornar fonte de renda no artesanato local.